
'Hack the System' é poesia ritualística nas entrelinhas do mundo digital: Joyce Muniz fala sobre novo lançamento pela Kompakt
DJ e produtora acaba de lançar 'Hack the System' - música que nasceu a partir de poema da colega Futuradora
Radicada entre Berlim e Viena, a DJ e produtora Joyce Muniz vive um dos momentos mais autorais e intensos de sua carreira.
Após conquistar pistas em todos os continentes e lançar faixas por selos como Exploited, Permanent Vacation e Get Physical, ela volta à gravadora alemã Kompakt com "Hack the System", uma faixa que funde crítica social, poesia ritualística e batidas hipnóticas.
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Ao lado da artista multidisciplinar Futuradora, Joyce constrói um manifesto sonoro que questiona a lógica acelerada e hedonista da sociedade digital, propondo uma escuta mais sensível - e também mais perigosa para os sistemas de controle.
Nesta entrevista exclusiva, Muniz fala sobre o processo criativo inusitado da faixa, que começou com um poema antes mesmo da base instrumental. Ela compartilha ainda reflexões sobre identidade, espiritualidade, turnês, o equilíbrio entre Brasil e Europa, e o que significa ser uma artista que se recusa a caber em rótulos.
Com a leveza de quem vive o presente e a profundidade de quem carrega muitas histórias, Joyce Muniz mostra que hackear o sistema pode ser, antes de tudo, um ato de escuta, conexão e liberdade.
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Q+A: Joyce Muniz
“Hack the System” carrega uma força poética e política rara na música eletrônica. O que você queria provocar ou comunicar com essa faixa?
“Hack the System” é basicamente um espelho no mundo em que vivemos. A tecnologia proporciona muitas vantagens em nossas vidas, mas traz um modo de viver diferente como era antigamente; a dependência do algoritmo, a forma de comunicar com tantas informações e desinformações... Atrai uma certa desconexão espiritual que atrai uma energia superficial e robótica na nossa forma de viver.
E tudo isso acontece porque o sistema nos proporcionou, e com isso estamos hackeando o planeta com a nossa maneira de viver, com o excesso de consumo. Mesmo sabendo de tudo isso, não podemos parar, pois para continuar a viver neste planeta, temos que fazer parte do sistema. O hedonismo se tornou um modo de viver mais prático, como se não existisse o amanhã. “Hack the System” é um reflexo do nosso presente, futuro e passado.
A construção da música começou a partir do poema da Futuradora, antes mesmo do beat. Como foi esse processo inverso e o que ele te ensinou artisticamente?
Essa produção foi bem diferente das outras, pois o texto veio antes da batida. Um poema é interpretado muito diferente do que um texto de uma canção. Há uns três anos, a Futuradora me mostrou esse texto que ficou na minha cabeça. No ano passado, eu lembrei e pedi para ela gravar a ela mesma interpretando a letra. Ela me passou o áudio em uma qualidade não tão boa, mas mesmo assim eu resolvi usá-lo, pois a forma que ela interpretou trouxe uma energia de filmes sci-fi dos anos 90.
Para mim era bem claro que a batida tinha que trazer uma vibe cósmica, electro e anos 80. Eu queria deixar o vocal bem claro e não usar elementos que tirassem a atenção da voz e da mensagem. Foi muito interessante, pois eu fui montando uma outra narrativa em cima da batida até virar uma canção.
Você já produziu faixas introspectivas, dançantes e rituais. Onde “Hack the System” se encaixa dentro do seu universo criativo?
Imagina se eu convidasse você para fazer um rolê na minha espaçonave e dissesse: “hoje não tem regras, leis, contas para pagar, doenças, brigas e medos”?. Um passeio no espaço sem compromissos. Só viver o momento e deixar tudo acontecer no seu tempo. Para mim, “Hack the System” é um desabafo, quase um livramento. Quando eu canto o refrão eu me sinto leve, é como se fosse um grito que estava guardado dentro de mim. Eu queria trazer leveza para as pistas.

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A faixa fala de resistência e de futuros possíveis. O quanto sua própria trajetória - como mulher, latina e imigrante - influenciou a criação dessa narrativa?
Essa produção não só traz a minha história, mas também da Futuradora, que é uma mãe, artista e imigrante que tem um background brasileiro/coreano. “Hack the System” é o resultado de um encontro de duas mulheres brasileiras que se encontram no exterior e que têm vidas simultâneas.
É muito louco o quanto as nossas trajetórias são parecidas na vida e como artistas. Apesar de muitas dificuldades que ambas sofremos, nunca perdemos nossa fé, e a arte foi umas das coisas que ajudou a gente continuar. Sem ela, não estaríamos aqui para contar essa história.
O nome "Hack the System" sugere ruptura, mas também estratégia. Que sistemas você acredita já ter hackeado - e quais ainda quer questionar com sua arte?
Todos nós hackeamos o sistema de alguma maneira, não existe o certo ou errado. Existem várias camadas. O sistema político, o sistema de família, amigos, vizinhos, trabalho e o dia a dia. Em tudo existe um sistema, e nem sempre a gente consegue fazer parte. Parece que sempre estamos tentando nos encaixar em um deles.
E quando você não consegue, você automaticamente vira um hacker. Na minha arte, eu também me sinto uma hacker, pois às vezes me sinto fora da caixinha, mas a diferença é que eu gosto disso. Muitas vezes eu já ouvi que as pessoas não conseguem definir o meu estilo.. Eu adoro isso, pois não sou a pizza que todo mundo gosta.
Berlim e Viena são os dois eixos da sua base hoje, mas o Brasil também está sempre presente na sua música. Como você equilibra essas referências tão distintas?
Eu vejo isso como um privilégio, poder estar presente e vivenciar mundos, culturas e línguas diferentes. Eu tenho certeza que sem essas influências minha vida e minha personalidade seriam bem diferentes, e com certeza a minha arte também. O calor e o groove brasileiro eu guardo no meu coração, essa é minha essência.
Mas a disciplina europeia me ensinou muito sobre estratégia e cultura. Ter crescido em uma cidade como Viena amando a música é muito especial. E hoje, morando em Berlim no meio do caos criativo, acho que tem tudo muito a ver. Eu não consigo me imaginar sem.

Sua agenda está intensa neste verão europeu, com passagens por eventos e clubs como Nature One, Bucht der Träumer, Pratersauna, Secret Rave no México, entre muitos outros. Quais shows você mais está ansiosa para viver neste momento da carreira e por quê?
Verão na Europa é sempre bom, especialmente os festivais boutique para cinco mil pessoas. A energia é muito boa. México e umas turnês que já estou esperando há muito tempo. Desde 2019 eu não volto, e nesse tempo muita coisa aconteceu, como colaborações com artistas mexicanos como Theus Mago e Andre VII. Estou super feliz de poder voltar. Com certeza vai ser um highlight na minha agenda.
Com tantas apresentações, como você se organiza para manter o ritmo e ainda entregar sets consistentes em cada apresentação? Existe algum ritual ou rotina que ajuda nesse equilíbrio?
Eu adoro o palco, eu realmente amo tocar e estar com o público. Às vezes ainda fico um pouco ansiosa, mas por respeito. Cada clube, cada festival, cada evento é uma experiência nova. Isso me traz uma satisfação imensa. Depois de quase 20 anos, eu não perdi a paixão.
Fora dos eventos, eu tento achar a minha balança através de espiritualidade, estúdio e natureza. O que mais me deixa feliz é poder testar minhas novas músicas nos finais de semana. Acho que isso traz ainda mais vontade de não parar nunca.
Estar em turnê alimenta sua criatividade? Você sente que essas vivências em diferentes lugares acabam se refletindo na produção musical também?
Não só turnê, o dia a dia alimenta a minha criatividade. Vivências pessoais, mas também um livro ou uma notícia podem influenciar as minhas ideias. Muitas vezes, quando eu estou em turnê, eu tento me conectar com algum colega local para fazer um jam no estúdio. Eu sempre estou gravando ideias de melodias pelo telefone. Criatividade não tem limite.
Após o projeto Synth Happens, turnês em todos os continentes e uma presença forte nos charts, você sente que vive hoje sua fase mais autoral e livre?
Com certeza. E eu não vejo hora de poder anunciar um projeto novo que eu estou montando no momento. Agora não posso falar. O momento é de viver “Hack the System”.

Sobre Joyce Muniz
A metáfora da vida como uma jornada está profundamente enraizada em muitas culturas - e talvez nenhuma artista a encarne melhor do que Joyce Muniz. Nascida no Brasil, ela se mudou ainda na adolescência para Viena e hoje divide seu tempo entre a capital austríaca - onde mantém seu estúdio e apresenta um programa na rádio nacional FM4 - e Berlim.
Joyce iniciou sua carreira como DJ e MC no icônico Flex Club de Viena. Ganhou notoriedade inicialmente como vocalista, chegando a excursionar com o Major Lazer, antes de mergulhar de vez na produção musical. Desde então, consolidou-se com lançamentos por selos prestigiados como Exploited, Get Physical, Kompakt, Permanent Vacation, International DJ Gigolo e Pets Recordings.
Mais recentemente, levou sua música para novos territórios, apresentando-se ao vivo com diferentes orquestras pela Alemanha no projeto Synth Happens - sendo a primeira mulher a integrar a iniciativa. Tudo isso sem abandonar os palcos como DJ: sua última turnê pela Austrália fez com que completasse o “mapa da música”, tendo tocado em todos os continentes - com exceção da pouco dançante Antártida.
Com uma agenda intensa de gigs semanais pela Europa, passagens constantes pela América e retornos frequentes ao Brasil - onde já foi capa da edição nacional da Mixmag - Joyce Muniz continua somando conquistas e conectando culturas por onde passa. Em sua jornada pessoal e musical, o caminho ainda promete muitas paisagens a serem exploradas.
Ouça “Hack the System” aqui.
Instagram @joycemunizmusic
Imagens: Debby Gram / Markus Morianz